Saiu no IG
Justiça revisitou caso de assassinato de rabino e descobriu que investigação cheia de falhas levou David Ranta a perder duas décadas de sua vida em prisão de segurança máxima
Na escuridão do inverno, há 23 anos, em uma rua em
Williamsburg, Brooklin, um ladrão de joias que fugia de um assalto
mal-sucedido entrou em pânico e atirou em um rabino hassídico na cabeça.
Quatro dias depois, o rabino Chaskel Werzberger,
sobrevivente de Auschwitz, morreu em decorrência dos ferimentos. Mesmo
na cidade de Nova York dos anos 1990, quando o número de homicídios
chegava a quase 2.245, o assassinato causou tristeza e indignação. O
"Rabino Assassinado" foi notícia de primeira página de um tablóide. O
prefeito David Dinkins (1990-1993) foi até Williamsburg para participar
do funeral.
David Ranta no complexo penitenciário de Alden, Nova York
O novo procurador distrital do Brooklin,
Charles Hynes, ficou ao lado dos judeus observando à medida que eles
balançavam para trás e para frente enquanto o caixão de pinho era levado
para fora. Ele prometeu trazer o assassino à Justiça.
Quarenta detetives trabalharam no caso, que, na
época, foi liderado pelo detetive Louis Scarcella. Trabalhando de perto
com um influente rabino da região, Scarcella prendeu um viciado em
drogas, desempregado chamado David Ranta. Judeus hassídicos cercaram o
carro que levava o homem acusado para a cadeia, batendo no teto e
gritando: "Pena de morte!"
Ranta foi condenado em maio de 1991 a 37 anos e meio de
prisão de segurança máxima. No entanto, ele, quase certamente, era
inocente.
Hynes, depois de uma longa investigação feira por uma
unidade que criou para pesquisar condenações questionáveis, pediu a um
juiz estadual para liberar o prisioneiro. No final de março, David Ranta
saiu da Suprema Corte do Broklin como um homem livre, após passar mais
de duas décadas na prisão.
A juíza Miriam Cyrulnik ouviu rápidos depoimentos do
advogado de defesa, Pierre Sussman, e de Hynes. Então, ela fixou seus
olhos em Ranta, homem de estatura modesta, com cabelos finos e quase
grisalhos. "Dizer que eu sinto muito pelo que você suportou seria um
eufemismo e grosseiramente inadequado, mas eu direi a você de qualquer
forma", disse, antes de afirmar: "Senhor, você é um homem livre."
Em seu segundo dia de liberdade, no entanto, David Ranta
sofreu um novo revés: uma série de ataques cardíacos, segundo informou
seu advogado. Ele foi levado para um hospital em Nova York, onde médicos
descobriram que uma das artérias de Ranta estava completamente entupida
e outra estava quase fechada e teve que ser submetido a cirurgias.
O caso
Nas décadas subsequentes à sua condenação pelo júri,
quase todos os itens de evidência de seu caso foram desconsiderados. A
testemunha-chave disse ao The New York Times que um detetive a instruiu a
identificar Ranta. Um estuprador condenado disse ao promotor público
que acusou Ranta falsamente, na esperança de conseguir um acordo para si
mesmo. Uma mulher assinou um depoimento dizendo que também mentiu sobre
o envolvimento de Ranta no crime.
Scarcella e seu sócio, Stephen Chmil, de
acordo com investigadores e documentos legais, infringiram regra após
regra. Efetuaram poucos registros escritos e treinaram uma testemunha.
Um investigador disse que eles permitiram que dois criminosos deixassem a
prisão para fumar crack e sair com prostitutas em troca de incriminar
Ranta.
No julgamento, o Ministério Público reconheceu
que os detetives cometeram infrações, mas os retrataram como calhordas
simpáticos. Apesar de aposentado, ao ser contactado, Scarcella defendeu
seu trabalho. "Eu nunca incriminei ninguém em minha vida."
Nenhuma evidência física ligou Ranta ao assassinato.
Ranta é tímido, seu cabelo grisalho está cada vez mais
ralo. Sua voz ainda carrega as entonações e gírias de alguém que veio da
classe trabalhadora do sul do Brooklin. Quando perguntado sobre como
havia sobrevivido todo esse tempo, disse que não tinha certeza se
realmente estava vivo.
"Eu ficava deitado em minha cela à noite e eu pensava
comigo mesmo: eu sou o único no mundo que sabe que sou inocente", disse.
"Eu cheguei aqui com 30 anos de idade, tinha filhos, uma mãe que estava
viva na época. Este caso acabou com a minha vida."
Um veredicto: culpado
Tudo começou com um assalto mal sucedido no dia 8 de
fevereiro de 1990. Chaim Weinberger, um mensageiro da empresa Pan
American Diamante Corp, saiu de seu apartamento em um conjunto
habitacional público em Williamsburg, levando consigo uma mala de 22kg
cheia de diamantes e pedras preciosas. Ele tinha que pegar um vôo às 7h
para a República Dominicana, onde sua carga seria usada para fabricação
de joias.
Suas viagens eram previsíveis e programadas,
por isso, se preocupava com possíveis roubos. No saguão, viu um rapaz
alto, loiro e bonito "parecido com um salva-vidas de praia", disse
Weinberger. Eles olharam um para o outro. O homem loiro desceu as
escadas.
À medida que Weinberger caminhava rapidamente para a rua,
viu que o homem o seguia. Ele jogou a mala no porta-malas e ligou seu
carro. O homem loiro caminhava rapidamente, cobrindo o rosto com um
lenço e sacou uma arma prateada.
Weinberger colocou o carro em marcha à ré e jogou o
atirador contra uma pilha de lixo. Ele fugiu, com a porta de seu carro
aberta. Ele lembrou, em uma entrevista, que não parou até chegar no
aeroporto. Mas a tragédia se desenrolou.
Funeral do rabino Chaskel Werzberger, em Nova York, reúne centenas (12/2/1990)
O assaltante, nervoso, viu o rabino Werzberger
aquecendo seu carro azul, um 1985 Oldsmobile Cutlass Supremo, a caminho
para uma sinagoga. Ele correu, disparou um tiro, puxou o rabino
mortalmente ferido para fora e foi embora em seu carro.
Esse assassinato mexeu com a comunidade Satmar.
Werzberger era o conselheiro e grande rabino. O Satmar, uma seita
intensamente devota e politicamente poderosa e ultra-ortodoxa, exigiu
que a polícia encontrasse o assassino. O Rabino Leib Glantz foi
escolhido para realizar o trabalho.
Glantz reuniu testemunhas, as trouxe para a
delegacia e traduzia do iídiche à medida que detetives realizavam
entrevistas. Eles trabalharam arduamente, falando com criminosos em
liberdade condicional e diferentes tipos de malfeitores foram
interrogados.
Um telefonema anônimo sugeriu que a polícia
falasse com Joseph Astin, um assaltante experiente, que era alto e
loiro, com boa aparência. Mas no dia 2 de abril, Astin bateu seu carro
em uma perseguição policial e morreu.
No final de abril, Scarcella foi para a cadeia e visitou
Dmitry Drikman. Drikman estava cumprindo pena por vários assaltos, e no
passado, havia sido condenado por estupro. Na esperança de obter uma
sentença mais curta, ele mostrou-se aberto e deu a Scarcella o nome de
seu amigo, Alan Bloom.
Bloom, um viciado em crack, tinha sido condenado por
dezenas de roubos e podia passar cerca de um século na prisão. E decidiu
começar a falar. Os detetives colocaram Bloom e Drikman na mesma seção
da cadeia, para que pudessem continuar a conversa.
Logo tiraram a conclusão que necessitavam para o caso:
Bloom tinha participado do roubo, mas um conhecido, David Ranta, um
ladrão amador e usuário de drogas, foi o atirador. E a namorada de
Drikman disse aos detetives que tinha visto Ranta e Bloom planejando
como iriam encobrir o crime.
O promoter Hynes apertou a mão de Bloom pouco antes dos
promotores terem lhe concedido imunidade de acusação no caso do
assassinato e reduzir sua pena por outros crimes. No dia 13 de agosto,
Scarcella e Chmil encontraram Ranta na Rua 73 em Bensonhurst. Eles o
algemaram e o levaram para a Delegacia 90 em Williamsburg.
Scarcella testemunhou no julgamento de Ranta, que, 26
horas depois, se sentou em um banco na delegacia de polícia e fez uma
confissão, muito incoerente. O detetive disse que não precisou sequer
fazer uma pergunta a Ranta. "Ele falava sem parar, e eu simplesmente
ouvi tudo que ele tinha para dizer," testemunhou.
Quando perguntado por que não questionou o suspeito, Scarcella se demonstrou indiferente. "Esse não é meu estilo", respondeu.
O caso estava carregado de inconsistências. Weinberger
tinha visto o atirador e testemunhou durante o julgamento que Ranta
“certamente" não era o culpado. Na verdade, quatro das cinco testemunhas
na primeira formação não identificaram Ranta como suspeito. No entanto,
o júri disse que Ranta era culpado.
Antes de sua sentença, Ranta falou ao tribunal a respeito
de policiais corruptos e aqueles que testemunharam contra ele. "Agora
fiquem a vontade para fazer o que precisa ser feito, mas eu sei que fui
incriminado", disse ao tribunal. "Quando eu apelar, espero que isso
traga à tona a verdade pois muitas pessoas ficarão envergonhadas de si
mesmas."
Por trás do caso
Durante o julgamento, Scarcella provou ser uma
testemunha interessante. Nascido no bairro de Bensonhurst, um detetive
da velha guarda, falou sobre como fazer com que um suspeito falasse com a
polícia e onde comprar a melhor pizza (New Haven, ele aconselhou). Mas a
descrição de sua investigação irritou o juiz, Francis Egitto.
Quando questionado por que levou presos para
fora da cadeia para comer em restaurantes e visitar amigos, Scarcella
respondeu: "Eu faço o que bem entendo com meus prisioneiros."
"Eles não são seus prisioneiros", respondeu Egitto.
O detetive testemunhou que ao entrevistar Bloom
e Drikman, nunca escreveu nada, conforme exigido pelo procedimento
policial. Também não mostrou fotografias de Drikman ou Bloom a
testemunhas, apesar de serem suspeitos de homicídio.
O juiz, questionou como Scarcella havia feito para que
Ranta confessasse, perguntando por que um detetive veterano não levou
Ranta para uma sala de entrevista, onde poderia ter gravado sua
confissão. Scarcella disse que transcreveu a confissão de 658 palavras à
mão.
David Ranta fala com repórteres após sua soltura na Suprema Corte do Brooklin, Nova York
Ranta insistiu que não confessara nada. Passou
por um teste de polígrafo no qual foi questionado se havia atirado no
rabino. No meio do julgamento, o juiz falou com os advogados de sua
desconfiança em relação aos detetives. "Eles estão de brincadeira",
disse. "Querem ser juizes, júris e carrascos".
No entanto, quando instruiu o júri sobre o que
considerar durante a deliberação, não mencionou nenhuma de suas
preocupações. Quatro anos mais tarde, novas dúvidas surgiram. Em 1996,
Theresa Astin testemunhou que seu marido, Astin, que havia morrido
naquele acidente de carro em abril de 1990, havia assassinado o rabino.
Ela sabia a respeito de detalhes do assassinato. O
advogado de defesa de Ranta, Michael Baum, apresentou uma moção
judicial. Theresa acabou sendo uma testemunha mais complexa. No início
de 1980, ela era a namorada de Joe Sullivan, conhecido como Mad Dog, que
matou pelo menos 11 homens.
Depois, se casou e se estabeleceu no bairro de
Gravesend com Astin, um mecânico com um problema de cocaína que
realizava assaltos à mão armada. Embora sua vida pessoal fosse
tumultuada, Theresa contou uma história convincente: seu marido havia
planejado um assalto, e chegou em casa tremendo, quase em lágrimas, no
dia em que o rabino foi baleado. Mais tarde, ela o encontrou no
banheiro, desmantelando uma pistola. "Ele disse, 'eu feri alguém, alguma
coisa aconteceu'", Theresa testemunhou. "Ele estava chorando. Estava
com medo."
"Você está em apuros, Joe. É como se você
tivesse matado um padre em nossa religião"," ela o advertiu. Egitto
lidou com a audiência. Mais uma vez, escreveu sobre fatos preocupantes -
e se recusou a lançar o veredicto. Ranta temia que tinha esgotado todos
seus recursos. "Eu achei que ia morrer na prisão", lembrou.
O caso desmorona
Todo Natal, Baum recebia um cartão de Natal de Ranta. "Eu
nunca tive nenhuma dúvida em minha mente de que ele era inocente",
disse Baum em uma entrevista. "Eu durmo com o cartão todas as noites."
Há 17 meses, o procurador do distrito, promovendo sua
recém-criada Unidade de Integridade de Convicção, deu uma palestra para
os defensores públicos. Alguém, perguntou ele, sabe de casos que
deveriam ser re-examinados? Baum levantou a mão.
No Bronx, Pierre Sussman, um advogado de defesa em busca
de evidência de má conduta policial, percebeu que o nome Scarcella
apareceu em vários casos problemáticos. Fez uma pesquisa de computador,
descobriu o nome Ranta e o visitou na prisão, onde concordou em assumir
seu caso.
Logo, os últimos vestígios de evidência foram
desconsiderados. Um homem que tinha 13 anos na época do assassinato,
Menachem Lieberman, declarou na época que tinha visto Ranta sentado em
um carro perto do local do crime.
Hoje, quando localizado em sua casa em Montreal,
Lieberman disse que o caso o havia incomodado durante anos. "Antes de
entrar ( na sala para reconhecer os suspeito
), um detetive de polícia me disse para ‘apontar para o cara com nariz grande", disse aos investigadores.
Ele apontou para Ranta, disse, "porque ele tinha o maior
nariz". E a namorada de Drikman, Elizabeth Cruz, também abandonou a sua
história e pediu desculpas. "Eu fiz o que podia", disse sobre a
esperança de conseguir um acordo para seu namorado.
Drikman também afirmou que havia inventado sua história, e
que os detetives e Bloom "incriminaram" Ranta. O caso contra Ranta
havia sido desfeito.
"Eu vivi durante anos em uma jaula, despojado,
humilhado", disse. "Eu vou ser capaz de tocar as pessoas novamente, de
tomar minhas próprias decisões". Ele deu um grande suspiro. "Para ser
bem honesto, o que está por vir me assusta."
Por Michael Powell e Sharon Otterman
Nenhum comentário:
Postar um comentário